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Entrevista com Daniel Innerarity

Em um currículo democrático, os jovens aprendem a ser intérpretes críticos de sua sociedade. Eles são encorajados, quando confrontados com algum conhecimento ou ponto de vista, a fazer perguntas como estas: Quem disse isso? Por que eles disseram isso? Por que devemos acreditar? E quem se beneficia por criá-lo e ser guiado por ele?

Michael W. Apple e James A. BeaneEscolas democráticas[1]

 

“A sociedade do conhecimento efetuou uma transformação radical da ideia de saber, a ponto de poder ser propriamente chamada de sociedade do desconhecimento, ou seja, uma sociedade cada vez mais consciente do seu não saber e que progride, mais do que aumentando seus conhecimentos, aprendendo a administrar a ignorância em suas diversas manifestações: insegurança, credibilidade, risco e incerteza”, escreveu Daniel Innerarity[2] há mais de uma década. Para Fernando Broncano, nossa sociedade do conhecimento é também uma grande fábrica de ignorância estratégica e desinformação sistêmica. Há todo um não saber que é produzido pela própria ciência[3]. Na sociedade da informação, a ignorância é um recurso que pode ser produzido por conveniência, diz Marina Garcés[4]O avanço do conhecimento aumenta proporcionalmente o do não conhecimento. Ao mesmo tempo em que produzimos conhecimento, também geramos incertezas, zonas cegas e muito não saber. Nossa sociedade, complexa e baseada no conhecimento, está fadada a produzir constantemente incógnitas[5]. Além disso, é urgente tomarmos consciência de que “toda ignorância diz respeito a um determinado tipo de conhecimento, e todo conhecimento é a superação de uma determinada ignorância. Aprender um determinado conhecimento pode implicar o esquecimento de outros saberes ou, na verdade, ignorá-los[6]”. Nossa sociedade do conhecimento exige que entendamos que existem pelo menos duas fontes de injustiça: epistêmica e cognitiva. Em primeiro lugar, porque o conhecimento científico não é distribuído uniformemente. Em segundo lugar, porque temos sistematicamente ignorado e deixado de lado muito conhecimento. E isso é especialmente relevante em instituições de ensino. 

Estamos cada vez mais conscientes de que, em muitas situações, a ciência não nos oferece soluções seguras. Não significa que não precisamos dela. A ciência, as ciências são importantes e mais necessárias do que nunca, mas não são suficientes. “A ciência não está em condições de livrar a política da responsabilidade de ter que decidir em condições de insegurança[7]”. Estamos experimentando isso em primeira mão durante esta pandemia. Quando, aliás, verificamos na própria pele o quão urgente é dar conta de saberes suprimidos, silenciados e marginalizados. A importância de incorporar em nossa análise o que acontece também o que nos acontece. A urgência de incorporar muito do conhecimento que é mobilizado em nossas práticas sociais. A verdade é sempre incompleta. E é sempre uma produção situada. A verdade de que precisamos, diz Antonio Lafuente, “não se faz fora de nós, mas é uma construção relacional. É uma forma de se relacionar e uma forma de prometer a convivência. E se aspiramos a mudar nossos modos de existência, precisamos incorporar mais detalhes, nuances ou contingências para que as novas práticas de convivência não corram o risco de serem reprimidas, ocultadas ou excluídas[8]”.

Vivemos numa sociedade, diz Innerarity nesta conversa, “caracterizada por uma enorme complexidade do ponto de vista das múltiplas interações que nela estão presentes; em que cada vez mais imprevistos irrompem e que só poderíamos prever parcialmente; e onde há muita incógnita que não podemos ignorar e que devemos levar em conta.” Conhecer, para Marina Garcés, não é dominar um campo de conhecimento ou controlar o exercício de determinadas capacidades. O conhecimento está vivo quando incorpora a consciência do que não é conhecido[9]. “Não faremos uma reflexão adequada sobre o papel da escola na sociedade atual se não refletirmos sobre o lugar que o conhecimento ocupa nessa sociedade e o tipo de conhecimento que é mais relevante naquela sociedade que defini como sociedade da incerteza, ignorância, riscos”, diz Daniel Innerarity na conversa.

Não faremos uma reflexão adequada sobre o papel da escola na sociedade atual se não refletirmos sobre o lugar que o conhecimento ocupa nessa sociedade e o tipo de conhecimento que é mais relevante naquela sociedade que defini como sociedade da incerteza, da ignorância, dos riscos

Os problemas mudaram e, portanto, o tipo de conhecimento que é necessário. Qualquer reflexão sobre o significado da escola deve levar em conta o tipo de conhecimento que o mundo contemporâneo exige. Um tipo de conhecimento muito diferente daquele em que muitos de nós somos treinados. Vivemos, prossegue Innerarity, numa sociedade acelerada, com tecnologias muito disruptivas, em que os novos saberes são verdadeiramente relevantes e questionam, pelo menos em grande medida, saberes herdados, saberes não reflexivos e cumulativos. Um conhecimento que é sempre mais do que informação com utilidade imediata. Um conhecimento que é sempre uma forma de apropriação do mundo.

A escola e o que nela aprendemos sempre teve um caráter paradoxal. A que surge de ter que transmitir alguns valores e uma cultura herdada e, ao mesmo tempo, formar as novas gerações para transformar essa mesma sociedade. Pedimos à escola, pelo menos nas últimas décadas, que seja um lugar de mudança e transformação, mas também de conservação e transmissão. Que ela cuide do nosso passado e nos ajude a construir o nosso futuro. Que recupere saberes herdados, mas que também seja capaz de trazer o futuro para o presente para se pensar um pouco melhor nas gerações vindouras. Pedimos que eduque para a incerteza, mas exigimos que o faça com certeza. Que prepare o aluno para se adaptar à vida, mas também, e mais importante, se possível, para enfrentar e mudar a vida que nos é dada.

A escola não apenas nos faz conhecer coisas, mas também nos expõe a coisas, diz Jan Masschelein[10]. Não se trata apenas de transmitir conhecimento sobre esses mundos, mas também de oferecer a possibilidade, em primeiro lugar, de se relacionar com eles e, em segundo lugar, de se conectar com eles, de se sentir preocupado ou envolvido com eles. Nós vamos à escola para entender o mundo e poder agir sobre ele. A escola teve a ver, desde a sua origem, com a abertura de outros mundos possíveis. Hoje, para Inés Dussel, “também é oportuno considerar que outros mundos possíveis podem ser oferecidos a partir da escola, em diálogo e em relação ao mundo em que vivemos[11]” (ver conversa com Inés Dussel aqui). A escola é também o lugar “onde se discutem as diferentes concepções que existem, no seio de cada sociedade, sobre o que aprender e como.[12]

As perguntas que devemos nos fazer, para a Innerarity, seriam: Como prestamos cada vez mais atenção a esse conhecimento mais reflexivo em oposição ao conhecimento meramente transmitido? Como estamos cada vez mais interessados ​​em explorar o que não sabemos, em vez de chafurdar no que sabemos? Como administrar um mundo onde o problema fundamental não é a falta de informação, mas a superabundância de dados que nos confundem e não nos orientam? Em quem eu confio? A quem dou autoridade em um mundo em que há tantas autoridades dispersas competindo entre si, tantos meios de comunicação, tantos cientistas, tantos especialistas? Como construir minha própria rede de confiança? Qual é o verdadeiro valor do conhecimento?

A pergunta que devemos nos fazer é, argumenta Marina Garcés em seu último livro[13], até que ponto o conhecimento que aprendemos nos permite desenvolver consciência e começar a pensar por nós mesmos e com os outros?

Temos que aprender a viver em um contexto de incerteza. A escola não pode deixar de transmitir às crianças e aos jovens que vão viver num mundo onde vão existir muitas coisas que não vão saber e que não vão poder saber ou que nós não sabemos se vão poder saber num dado momento. Innerarity considera que o principal objetivo da educação seria então “ajudar as pessoas a terem uma visão geral das coisas, a saberem interpretar os fatos e não apenas a acumulá-los, a pensarem por si próprias num mundo em que estamos nos referindo a tanto conhecimento dos outros”. Ensinar é fazer pensar. Mas para aprender a pensar é preciso aprender a não saber[14]. A escola seria, assim, aquele lugar que nos ensina a prestar atenção ao mundo que nos rodeia, a compreendê-lo melhor e a poder agir sobre ele. A escola seria o lugar (tempo e espaço) onde se aprende a apaziguar os impulsos, a respeitar a alteridade, a entender o ponto de vista do outro, a argumentar, a decidir coletivamente e a ter a palavra[15]. O lugar para aprender a pensar. E aprender a pensar com os outros.

Vamos ajudar as pessoas que temos de formar a terem uma visão geral das coisas, a saberem interpretar os fatos e não simplesmente a acumulá-los, a pensarem por si próprias num mundo em que tanto nos referimos ao saber dos outros

Ensinar é também “explicar às pessoas que não temos escolha a não ser confiar, que se quisermos apenas saber o que podemos saber por nossa própria experiência, isso reduzirá muito nosso mundo”, diz Daniel Innerarity. Sem renunciar ao que eu penso, “não posso abrir mão de um elemento de soberania cognitiva e reflexividade pessoal, em virtude do qual essa confiança não é uma confiança cega, é uma confiança provisória, é uma confiança reflexiva, é uma confiança que tem acreditado, mas que pode se perder no tempo, e que precisa ser revista de tempos em tempos”. Emancipar e associar seriam os objetivos prioritários de toda a educação [16].

“Se em algum momento a escola foi a transmissão de um conhecimento seguro, um conhecimento útil, verificável e indiscutível — e há uma parte do conhecimento que tem essas características —, provavelmente neste momento deveria caminhar para uma escola que, sem se preocupar excessivamente ou acima de um certo nível, também deve ensinar as pessoas a viver em circunstâncias nas quais não podem saber tudo, nas quais devem estar abertas à tentativa e erro e nas quais nosso relacionamento com nosso próprio conhecimento deve ser mais modesto e, portanto, mais passível de revisão, menos preconceituoso”, diz Innerarity.

Para ele, são três as capacidades que a escola deve nos proporcionar: construção de confiançaautorreflexão e educação para a incerteza.

 

Carlos Magro

@c_magro

[1] Michael W. Apple y James A. Beane (1997). Escuelas democráticas. Madrid. Morata. p.31
[2] Daniel Innerarity (2009). La Sociedad del desconocimiento en La Sociedad de la Ignorancia y otros ensayos. Barcelona: Zero Factory. p.43
[3] Fernando Broncano (2019). Puntos ciegos. Ignorancia pública y conocimiento privado. Madrid: Lengua de trapo.
[4] Marina Garcés. Escuela de aprendices. Barcelona: Galaxia Gutenberg. p.105
[5] Fernando Broncano (2019). Puntos ciegos. Ignorancia pública y conocimiento privado. Madrid: Lengua de trapo. p.217
[6] Boaventura de Sousa Santos: Construyendo las Epistemologías del Sur Para un pensamiento alternativo de alternativas, Volumen I. Buenos Aires: Clacso.  (Ver artículo)
[7] Daniel Innerarity (2009). La Sociedad del desconocimiento en La Sociedad de la Ignorancia y otros ensayos. Barcelona: Zero Factory. p.43. (Ver artículo)
[8] Antonio Lafuente. La verdad entre todos. (Ver artículo)
[9] Marina Garcés. Escuela de aprendices. Barcelona: Galaxia Gutenberg. p.104
[10] Jan Masschelein (2019). La escuela como práctica y tecnología de la pertenencia al mundo (Trad. B. A. Morantes, & J. G. Díaz). Praxis & Saber, 10(24), 387-399. (Ver artículo) 
[11] Inés Dussel (2006). Curriculum y conocimiento en la escuela media argentina. Anales de la educación común / Tercer siglo / año 2 / número 4 / Filosofía política del currículum / agosto de 2006. (Ver artículo)
[12] Marina Garcés (2020). Escuela de aprendices. Barcelona: Galaxia Gutenberg. p.62
[13] Marina Garcés (2020). Escuela de aprendices. Barcelona: Galaxia Gutenberg. p.103
[14] Marina Garcés (2020). Escuela de aprendices. Barcelona: Galaxia Gutenberg. p.104
[15] Philippe Meirieu (2018). Pedagogía: Necesidad de resistir. Madrid: Editorial Popular. p.140
[16] Philippe Meirieu (2018). Pedagogía: Necesidad de resistir. Madrid: Editorial Popular. p.102

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